D. MARTIM GONÇALVES DE MACEDO: UM HERÓI IGNORADO DA BATALHA REAL Escrito por Saul António Gomes
21-Ago-2008
Em túmulo raso, à entrada da Capela do Fundador, no Mosteiro de Santa Maria da Vitória, em lousa em que se notam, na parte superior, vestígios de execreção lapidar, mas com legenda, inscrita mais abaixo, em caracteres tardios e neo-góticos, o visitante é informado de se tratar da sepultura de Martim Gonçalves de Macedo ou de Maçada. A tradição historiográfica batalhense explica a razão desta sepultura em lugar tão discreto e simultaneamente tão simbólico no magnífico panteão gótico da segunda dinastia portuguesa. Trata-se de um escudeiro que, nos campos de S. Jorge, no desenrolar da cruenta Batalha Real, no entardecer do dia 14 de Agosto de 1385, salvou a vida ao rei D. João I de Portugal.
Esta tradição tem fundamento histórico, como veremos, mas não a encontramos documentada nos grandes textos e autores antigos mais conceituados. Situações há, contudo, em que o Mosteiro da Batalha, nos seus diversos testemunhos arqueológicos, artísticos e heráldico-epigráficos, recorda uma história que as grandes crónicas, contra o que seria de esperar, eventualmente, omitem ou desconhecem. O inverso, naturalmente, também se verifica, podendo defender-se que a memória da famosa Batalha Real, que está no fundamento da edificação deste impressionante templo e panteão do Quattrocento europeu, se lavrou, ao longo do tempo, tanto pela palavra escrita em pergaminho ou em papel, quanto pela palavra lapidada em pedra.
Fernão Lopes ignora em absoluto o nome de Martim Gonçalves de Macedo, posto que aluda à luta, no zénite da batalha, entre o Mestre de Avis e o cavaleiro castelhano Álvaro Gonçalves de Sandoval, com vantagem para este, que conseguiu dobrar, joelhos postos em terra, o Soberano dos Portugueses. Na iminência de Álvaro de Sandoval desferir o golpe mortal, contudo, seguindo o celebrado cronista, o Rei da Boa Memória terá conseguido inverter a situação. Não explica cabalmente, no entanto e na verdade, como sucedeu este verdadeiro milagre que salvou a vida ao jovem monarca.
Eis o passo tal qual Fernão Lopes o refere na sua crónica:
“El-Rey, quamdo vyo a avanguarda rota e o Conde em tamanhada pressa, com gramde cuydado e todos com elle abalou rijamente com sua bamdeira, dizemdo altas vozes com gram esforço: Auamte, senhores, auamte! Sam Jorge, Sam Jorge! Portugall, Putugall, ca eu som el-Rey! E tamto que chegou hu era aquell duro e aspero trabalho, leixadas a(s) lanças de que se pouco seruiram por aazo da mesura da gemte, começou de ferir de facha assy desemuolto e com tal uomtade como se fosse huum simprez caualleiro desejosso de guanhar fama. E ueo a ell per aqueçimento Aluaro Gonçaluez de Sandouall, bem mançebo e de boom corpo, ardido caualeiro, casado daquell anno. E como el-Rey alçou a facha, deçemdo pera lhe dar, ell reçebeo o golpe, e trauou per ella, e tirou tam rijo que lha leuou das maãos e feze-o ajeolhar dambollos geolhos; e foy logo leuantado. E quando Alvaro Gonçalvez leuantou a facha pera lhe dar com ella, el-Rey esperou o golpe, e tornou-lha a tomar per aquella guysa; e quando lhe qujsera outra vez dar, jazia ja morto pellos que eram presentes que o majs a pressa fazer nom poderom, porque cada huum tijnha que veer em sy.” (Crónica de D. João I, Capº 42).
Atentemos bem no que escreve Fernão Lopes. D. João I, lutando com facha contra Álvaro Gonçalves de Sandoval, perde-a e, indefeso, cai por terra (“feze-o ajoelhar dambollos geolhos”). Esperar-se-ia o pior, o fim. Mas o cronista evita pormenores e regista, apenas, o comentário: “e foy logo leuantado”. Não nomeia, pois, o ou os interventores neste momento vital de toda a história deste famoso prélio luso-castelhano. D. João I recupera a sua facha e volta a perdê-la num segundo e imediato choque com Álvaro de Sandoval, combatente que revelava superioridade física. Valeu a D. João I que “os que eram presentes” mataram o castelhano.
O não identificado autor da Crónica do Condestável, absorvido em projectar D. Nuno Álvares Pereira como estratega e herói fundamental da Batalha Real, omite este acontecimento, tudo resumindo em breves palavras:
“E o conde estabre indo ante a sua bandeyra, forom em elle postas muytas lanças e em breve forom todas as lanças, de huã avenguarda e da outra, quebrantadas e vallado dellas feyto, e entom vierom as fachas e logo el rey, com a rreguarda, com grande aguça se ajuntou aa venguarda, feryndo de fachja tantos e taes golpes que eram asperos de atender aaquelles que os soffriam, como vallente rey ajudando seus naturaes, e sua real coroa defendendo.” (Crónica do Condestável, Capº 51).
O silêncio em torno do nome de Martim Gonçalves de Macedo não é, surpreendentemente, um exclusivo de Fernão Lopes ou do anónimo autor da Crónica do Condestável. Luís Vaz de Camões, n’Os Lusíadas (Canto IV, 28-45), não se lhe refere, o mesmo sucedendo com Francisco Rodrigues Lobo, o afamado poeta leirenense, que conhecia bem o Mosteiro de Santa Maria da Vitória e a sua Capela do Fundador, o qual, no seu poema épico O Condestabre de Portugal D. Nuno Alvares Pereyra, contando largamente a Batalha Real, não descobre senão o episódio evocado na tradição lopesiana:
“Mas o Rey Portugues que nelle atenta,
Em quem só tinha a Patria sustentada,
Ante os seus animosos se apresenta,
Com huma facha na mão dura, e pesada.
E qual o Sol na furia da tormente,
Alegra a gente nautica infiada,
Que sorvesse no abismo vio mil vezes,
Tal o Rey se mostrou aos Portuguezes.
A elles Lusitanos esforçados,
Que eu sou rey vosso, e vosso companheyro,
A elles (vay dizendo em grande brados)
Vamos desenganar este Estrangeyro.
Tras elle os Portugueses animados,
Seguindo o seu farol tão verdadeyro,
As forças renovando, os braços movem,
Contra as gentes sem conto que alli chovem.”
(O Condestabre, Canto XIV).
Frei Luís de Sousa, o celebrado cronista dominicano, escrevendo, sobre o Mosteiro da Batalha, por 1621, páginas de ímpar beleza na sua História de S. Domingos, nas quais colhemos pormenores invulgares e da maior relevância informativa do passado deste instituto monástico, como faz a propósito e por exemplo, da Capela do Fundador ou das Capelas Imperfeitas, nada aponta sobre os túmulos rasos que se encontram à entrada da igreja conventual, posto que atente nos demais sepulcros que nas capelas da cabeceira da igreja, na sala capitular e no claustro se encontravam.
Também o anónimo autor de O Couseiro, nas bem conhecidas memórias históricas da Diocese de Leiria, redigidas em meados de Seiscentos, mais precisamente por finais da década de 1650, nos capítulos 68 a 74, se calou em relação ao assunto que nos ocupa.
Dois séculos mais tarde, em 1827, D. Fr. Francisco de S. Luís, autor da conhecida “Memoria historica sobre as obras do real Mosteiro de Sancta Maria da Victoria, chamado vulgarmente da Batalha”, acrescenta informação inédita e objectiva sobre o histórico monumento. Disserta com interesse sobre os túmulos rasos de Mateus Fernandes e de Diogo Gonçalves de Travassos, localizados, como escrevemos, à entrada poente da igreja. Mas nada deixa escrito sobre o túmulo de Martim Gonçalves de Macedo.
Perante o silêncio destes respeitáveis cronistas e autores, como se poderá atentar na lápide que identifica Martim Gonçalves de Macedo sem alguma dúvida e suspeição crítica? Tratar-se-á, porventura, de alguma falsificação histórica incrustada no monumento gótico em fase tardia?